Os monopólios da virtude e da verdade
Discurso de despedida de Gustavo Franco teve momentos até brilhantes, mas merece questionamentos
Elena Landau*, O Estado de S.Paulo 12 de março de 1999
O maniqueísmo do discurso de despedida de Gustavo Franco parece ter influenciado os comentários que se seguiram: “O discurso foi brilhante”, ou “Vamos processá-lo”, etc…
Na realidade, o manifesto teve momentos positivos, até mesmo brilhantes, e outros que merecem no mínimo algum questionamento. Entre os aspectos positivos destacaria:
– a coragem de Gustavo em reafirmar com ênfase suas convicções, mesmo ciente das críticas que se seguiriam.
Quem conhece Gustavo não se surpreendeu;
– a explicitação do cinismo da direita e do paradoxo da esquerda que insiste
em defender privilégios;
– a crítica, ainda que recheada de excessivo número de adjetivos, à posição da nova Fiesp, que exigia a redução artificial das taxas de juros e se demonstrou surpresa ao perceber que para reduzi-las o regime cambial deveria mudar.
Os tradicionais departamentos técnicos da instituição parecem estar fazendo falta;
– o reconhecimento da importância dos programas Proer e Proes na menor vulnerabilidade do País à crise, na defesa do depositante e do contribuinte;
– a defesa da privatização dos bancos federais e estaduais, em decorrência de sua inevitável utilização como instrumento político.
Subsídios, financiamentos ao pequeno produtor, etc., disse corretamente, devem estar previstos no Orçamento. O que essas instituições já deram de prejuízo ao Tesouro e, portanto, ao contribuinte supera certamente seus benefícios para agricultura brasileira e outros programas com viés social e desenvolvimentista;
– uma tradição, iniciada em 1995, foi mantida.
Gustavo Franco foi mais um a defender a independência do Banco Central. Por convicção e também a partir de sua experiência pessoal em que, mais do que em qualquer outra administração, o Banco Central foi independente de fato.
Questionaria, por outro lado:
– a utilização da posse do novo presidente para a leitura do longo manifesto. Isso reduziu o tempo a ser utilizado para o presidente que entrava o expor suas ideias. Com sua objetividade de sempre, porém, Armínio não frustrou a plateia e deu seu recado.
Em apenas dois dias, o real valorizou-se 14%, desanuviando um pouco o quadro de pessimismo traçado pelo presidente que saiu;
– o fato de ter posto seu amigo e ex-chefe Pedro Malan em situação desconfortável ao acusar o presidente da República de ter abandonado a defesa da moeda quando optou pelo câmbio flexível.
Política que o ministro da Fazenda, com a responsabilidade que exige o cargo e que sempre o caracterizou, vem conduzindo. Malan sempre foi o maior apoio de Gustavo ao longo dos últimos anos. Amigo de longa data, não poderia retrucar as críticas em um debate público sobre patriotismo e responsabilidades de um cargo público;
– as críticas veladas ao ministro José Serra, a Francisco Lopes, ao economista Rudiger Dornbusch, alguns dos que acredito ter identificado, e a outros que não reconheci.
Por que não os citar abertamente, como fez com Horácio Piva? Teria tornado o debate e as críticas mais honestos. Não gosto particularmente dos monopólios da virtude e da verdade, que dizem: “Todos que discordam de mim o fazem ou por ingenuidade ou movidos por interesses escusos.”
E onde se situam economistas que, como eu, não se consideram tolos, são patriotas, cientes dos males do imposto inflacionário e do desemprego, têm todas as suas aplicações em real, não são brizolistas, nem são da oposição nem da direita, nem são movidos pelas forças do mal (apesar de minha amizade com ministro José Serra) e ainda assim questionaram a política conduzida por Gustavo?
Pensei: “Eu não existo”;
– no que se refere à valorização do real, o discurso de Gustavo Franco concentrou-se no período que se seguiu ao lançamento do Real, o segundo semestre de 1994, Esqueceu-se de discutir o período seguinte, de meados de 1995 em diante, quando o debate sobre política cambial se iniciou dentro da própria equipe econômica, com a divergência pública com o então presidente do Banco Central, Pérsio Arida – disse que não era possível prever a crise criada pela moratória russa.
Entretanto, a estratégia de câmbio fixo sempre foi reconhecidamente de risco. Não era necessariamente errada, mas a mais arriscada diante da volatilidade dos fluxos financeiros internacionais e das dificuldades fiscais.
A crise russa pode até ser considerada um evento imprevisível, mas as experiências mexicana, de 1994, e argentina, de 1995, já permitiriam demonstrar o risco da estratégia escolhida e da conveniência de um plano de contingência enquanto fosse possível mudar de forma voluntária o regime cambial – a ideia de que o câmbio fixo forçaria a sociedade brasileira a aceitar um ajuste fiscal da proporção necessária a tornar a taxa de câmbio consistente no longo prazo.
Ainda que válida na partida, a manutenção do regime cambial por tanto tempo pode ter alimentado uma sensação artificial de estabilidade, contribuindo para o adiamento da mudança no regime fiscal, ao contrário do previsto.
É bom notar que, apesar de Gustavo ter apontado corretamente para as incoerências da direita brasileira que defende, mas não pratica, austeridade fiscal, deveria ter percebido a tempo que o próprio governo não produziria o ajuste necessário na velocidade necessária.
Com o fraquíssimo pacote 51, apesar da gravidade da situação criada pela crise asiática, estava claro que se achava que dava para adiar a solução definitiva das questões de desequilíbrio fiscal. Ali parecia evidente que as contas públicas não se ajustariam de forma a corrigir a inconsistência cambial.
Em 1995, a questão era complexa: se a trajetória do
câmbio era viável ou não, não era óbvio saber. Em 1998, no entanto, era evidente sua insustentabilidade, mas talvez já fosse tarde para uma flexibilidade voluntária e controlada do regime cambial.
Tendo declarado sua divergência com os rumos tomados na área cambial ainda que fosse evidente a insustentabilidade da situação, Gustavo fica-nos devendo qual seria a alternativa diante da perigosa perda de divisas que vinha ocorrendo. Ficar parado ou controlar a remessa de divisas?
Mas tudo isso é passado. Tenho confiança que, com a competência do novo presidente do Banco Central e sua estrela pessoal, atravessaremos este momento de instabilidade excessiva decorrente de uma mudança imposta no regime cambial.
* Elena Landau é economista