Regulação: fazendo e aprendendo

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Regulação: fazendo e aprendendo

O público não sabe o que é uma agência reguladora e nem os critérios de definição das tarifas

Elena Landau*, Valor Econômico
02 de outubro de 2003

O governo colocou em consulta pública dois anteprojetos que alteram as atribuições das agências reguladoras. A proposta retira das agências o poder sobre a licitação das concessões de serviços públicos e as submete a contratos de gestão.

A idéia é redefinir as relações de poder, em favor do governo e em detrimento das agências. O diagnóstico implícito nos ante-projetos é que as agências, ao usarem o IGP-M como indexador das tarifas e adotarem o critério do maior preço para licitações, acabaram por prejudicar o
consumidor.

No entanto, a política de tarifas em curso reflete opções do governo passado e não decisões independentes das agências reguladoras. Os aspectos do funcionamento das agências a serem corrigidos são de outra natureza; vale a pena listá-los, ainda que brevemente, para nos perguntarmos se os anteprojetos propostos os resolvem ou não.

Comecemos pela faceta mais visível dos problemas: o público não sabe o que é uma agência reguladora. Quando da criação das novas agências, não houve uma campanha publicitária explicando do que se tratava. Até hoje as reclamações dos usuários são feitas predominantemente aos órgãos genéricos de defesa do consumidor. Quando há alguma mudança normativa, quem se encarrega de anunciar é a empresa prestadora de serviços e não a agência.

No caso do racionamento, por exemplo, não houve campanha prévia que estimulasse a redução de consumo de energia. Outro exemplo, na área das telecomunicações, é a exigência de colocar o código da operadora antes do código da cidade também nas ligações com celulares. São as empresas que vêm alertando o usuário para essa necessidade, sem que ele consiga entender qual o benefício da medida. Para a sociedade, é como se agência não existisse e, além disso, fica a impressão de que as concessionárias gastam excessivamente em publicidade.

Mais grave ainda é o desconhecimento dos critérios de definição das tarifas. O usuário não sabe como se formam, quais são seus componentes e qual a participação dos impostos no preço final. E, quando há reajustes, não há um esclarecimento pró-ativo por parte da agência, oque estimula a desconfiança da população em relação às concessionárias.

Questões de comunicação à parte, o relacionamento das agências com os concessionários também está longe do ideal. O tratamento dispensado a empresas privadas e públicas é desigual. Há evidente complacência com relação às públicas, perpetuando, de certa forma, o status quo anterior à independência das agências. O enfoque no controle tarifário é excessivo, gerando distorções alocativas. Ninguém pode ter nada contra o objetivo de reduzir tarifas, desde que não implique na redução de investimentos e no risco de uma crise energética no futuro.

Faltou ao regulador experiência financeira para compreender os riscos da alavancagem das
concessionárias ou para criar um ambiente propício ao financiamento no longo prazo para projetos de expansão da oferta de serviços. O número de resoluções é excessivo, frequentemente excedendo a competência normativa das agências e gerando grande instabilidade regulatória. Há falta de clareza nos critérios de fiscalização e as sugestões da sociedade oferecidas nas audiências públicas são raramente incorporadas ou mesmo respondidas.

Os problemas de relacionamento foram agravados pela falta de um mecanismo isento de julgamento de revisão das decisões administrativas. Questões regulatórias são necessariamente complexas. O regulador deve conciliar o interesse dos usuários — melhor qualidade de serviços ao menor preço possível — com o das concessionárias — remunerar o capital dos acionistas e fazer novos investimentos. Erros são inevitáveis. Nas agências tal como hoje estruturadas, não há divisão entre os poderes normativos, fiscalizadores e judiciais. O recurso ao Judiciário é lento e, no caso de eventual indenização, resulta em precatórios sem liquidez.

Os anteprojetos criaram a figura do ouvidor e os contratos de gestão. O ouvidor, em tese, permite maior acesso da sociedade aos entes reguladores, mas para tanto deve ser um personagem imparcial e não representante do governo. Os contratos de gestão parecem ter sido motivados por considerações — exclusivamente políticas. Pouco foi revelado em relação à definição de metas e penalidades. A questão da desigualdade de tratamento entre empresas públicas e privadas deverá ser acentuada com a decisão de levar as licitações para responsabilidade dos Ministérios setoriais, em especial no setor elétrico, onde a presença de empresas estatais ainda é significativa.

Na raiz dos nossos problemas está a inexistência de uma boa cultura de regulação. Até recentemente, os serviços públicos eram prestados por empresas estatais, em geral monopolistas. Tanto o ser regulado (a estatal) quanto o regulador (a agência, também estatal) estavam subordinados aos ministérios setoriais. A regulação independente era uma ficção. A história começou a mudar apenas no passado recente quando parte do setor de serviços públicos foi privatizada e foram então criadas agências independentes. Não houve um período de teste ou de gradual transição ou mesmo um processo de treinamento educacional à luz do que se pratica e da experiência acumulada em outros países. O resultado foi o que se viu.


Em que medida a redefinição das relações de poder entre governo e agências nos ajudará a moldar uma cultura mais desenvolvida de regulação? A resposta está longe de ser óbvia. É bem verdade que nossas agências têm tido uma postura isolacionista ao extremo, tanto política quando funcional. Mas nada disto justifica revisar o próprio conceito de independência.
O controle do governo sobre as decisões das agências não é necessariamente a melhor maneira de resguardar o interesse público de forma ampla e duradoura.

* Elena Landau é economista e consultora

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