Banalidade
No dia 3 de fevereiro, 15 pessoas foram feridas a bala. Fuzil matou garçom que estava vendo o bloco passar. Nem carnaval mais se pode curtir
Elena Landau*, O Globo
10 de fevereiro de 2018
Seiscentos e quarenta tiroteios no mês de janeiro. No dia 3 de fevereiro, 15 pessoas foram feridas a bala num único dia. Milicianos e traficantes dominam o transporte alternativo e provocam a demissão do secretário responsável. Dezesseis policiais foram mortos este ano. Balas perdidas, mortes de inocentes e adolescentes. Crianças que nem vieram ao mundo já são vítimas da violência. São as noticias diárias nos nossos jornais.
Como o carioca sobrevive, levanta todos os dias, segue para o trabalho, para a escola e leva uma vida que aparenta normalidade? A elite do Rio já esgotou seus recursos: carros blindados, grades, segurança particular. Já percebeu que nada mais a protege. O caminho parece ser o Galeão. Para quem pode. Ou para quem já desistiu desta Cidade Maravilhosa. Mas para os que amam o Rio, ou os que não têm onde se esconder, o que fazer? Políticos se reúnem, anunciam políticas de longo prazo, mas nada de concreto acontece. O Exército vai para as ruas e não resolve. A violência só aumenta. E a desesperança cresce. Iniciativas privadas pipocam, mas não é função da sociedade suprir a ausência do Estado.
Contra o fuzil não há proteção. É arma às vezes mais sofisticada do que a da polícia. Arma que matou o alegre garçom que estava vendo o bloco passar. Nem carnaval mais se pode curtir.
Peço desculpas por começar o artigo em tom alarmante e que não traz nada de novo. É só um apanhado de notícias que o povo do Rio está acostumado a ler diariamente.
Estamos meio anestesiados frente à violência e com a perda de controle sobre ela. Quase conformados. Essa sensação de quase normalidade de uma situação tão extrema me veio à cabeça assistindo esta semana ao telejornal da manhã.
O jornal nesse horário ajuda o cidadão a programar seu dia de trabalho. Fala da previsão do tempo e da possibilidade de mais chuvas de verão ao fim do dia.
Alerta para os riscos de alagamento. Passa então para os gargalos do transporte. Câmeras mostram a situação do trânsito nas principais vias da cidade. Ajuda o carioca a se organizar e calcular o tempo que levará para chegar ao trabalho. O telejornal vai assim prestando um belo serviço de utilidade pública. Em seguida, os apresentadores alertam, com a mesma naturalidade que falam sobre a previsão do tempo, para os locais da cidade onde está havendo o tiroteio do dia. Na tela, uma cena de carros num engarrafamento e pessoas no chão tentando se proteger de balas. Quando foi que notícias de tiros e pistas interditadas passaram a fazer parte natural das informações diárias que precisamos para organizar mais um dia de trabalho?
Diante da TV, fiquei chocada com a banalização de um estado de exceção.
Em tempo: no mesmo dia que escrevi este artigo fui abordada por uma patrulhinha, de onde saltou um policial com um fuzil na mão. Sem explicação alguma, apontou a arma para mim. O olhar dele me impressionou; não sei quem estava com mais medo, se era ele ou era eu.
* Elena Landau é economista