Gente sem-vergonha

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Gente sem-vergonha

Côrtes relata sofrimento na prisão, mas isso não o humanizou. Ele tem razão, cadeia não serve para ressocialização. O caso dele é exemplar

Elena Landau*, O Globo
12 de abril de 2018

Sergio Côrtes, o ex-secretário de Saúde do Rio, que esteve preso por recebimento de propina, deu recentemente uma entrevista a este jornal. Diz textualmente: “Eu nunca repassei custo de tributos. O dinheiro vinha da margem de lucro de empresas que operavam no exterior. A corrupção foi na margem de lucro, sem dano ao patrimônio”. Surreal. Pelo jeito, os 300 dias na cadeia não lhe ensinaram nada. Se diz arrependido, mas não se sabe exatamente de quê. De onde ele acha que saiu essa margem de lucros?

Ainda que não haja uma definição legal para classificar que tipo corrupção é pior, o desvio de recursos da saúde é chocante. Imperdoável. Uma corrupção hedionda. Quantas vidas poderiam ter sido salvas com o gasto de R$ 300 milhões em atendimento emergencial, por exemplo? Superfaturamento, encomendas desnecessárias, remédios que não foram comprados, filas nos hospitais, nada disso, pelo jeito, lhe parece ser um dano ao patrimônio. Só pensa na grana.

Côrtes relata o sofrimento que viveu na prisão. Mas esse sofrimento não o humanizou. Ele tem razão, a cadeia não serve para uma ressocialização. O caso dele é exemplar. Quando se formou em Medicina fez um juramento: “Em toda casa, aí entrarei para o bem dos doentes, mantendo-me longe de todo o dano voluntário e de toda a sedução”. Como secretário, o rasgou. Se eu fosse médico, teria vergonha de dizer que ele é meu colega de profissão.

Quando esses corruptos vão entender que, além de terem roubado nosso dinheiro, roubaram esperanças e vidas? Estradas que causam acidentes, pontes caídas que isolam uma população, o saneamento que não chega a quem precisa, escolas desmontando, e muito mais, são consequências de roubos que sustentaram desde um padrão de vida nababesco até campanhas políticas bilionárias. Mas, tudo bem, porque a propina saiu apenas das margens de lucro, não é mesmo?

Infelizmente, Côrtes não é um exemplo isolado. A Lava-Jato avançou na punição de pessoas que até bem pouco tempo se achavam intocáveis. E que nós também imaginávamos que estariam fora do alcance da Justiça. Mas, empresários e políticos presos nas diversas ramificações da Lava-Jato não mostram remorso.

Alguns até pedem para seus advogados redigirem pedidos públicos de desculpas, mas são apenas parte dos acordos de delação. Não há emoção. Não há nenhum vestígio de constrição ou humanidade. São todos uns injustiçados. Apenas faziam o que sempre se fez. Por que logo eles a pagar?

Só vi corruptos chorando por medo da prisão. Não há empatia com suas vítimas. Como esquecer que o mesmo Côrtes foi gravado dizendo que a “putaria” (sic) teria que continuar? Ninguém diz claramente “tenho vergonha do que fiz”. É que é tudo gente sem-vergonha.


* Elena Landau é economista


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