Tarifas de energia e respeito aos contratos
É um contrassenso, em pleno século XXI, o país ter mais de 130 estatais. Não existe dinheiro público caindo do céu
Antonio Carlos Velloso Filho e Elena Landau*, Valor Econômico
23 de outubro de 2006
Atualmente tramitam em diversos tribunais do país ações judiciais que atacam revisões e reajustes tarifários devidamente aprovados pela Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel). Nessas demandas, ainda que desprovidas de argumentos jurídicos, pede-se, liminarmente, aumentos tarifários determinados pela agência reguladora.
Revisões e reajustes tarifários, além de expressa previsão legal, estão contemplados nos diferentes contratos de concessão do serviço público de distribuição de energia elétrica. Este arcabouço foi desenhado por ocasião da privatização das empresas de energia elétrica exatamente para garantir o equilíbrio econômico-financeiro do contrato.
No passado, nas empresas de controle público era uma prática recorrente o represamento das tarifas públicas como parte da política antiinflacionária. Esta política nunca evitou o descontrole do processo inflacionário, nem tampouco contribuiu para seu fim, que veio apenas com o sucesso do Plano Real.
O resultado desta peculiar interpretação do interesse público foi apenas a inviabilização econômica e financeira das empresas estatais, o que, de certa forma, acabou por justificar o próprio processo de desestatização.
Muito mais do que uma opção ideológica, a transferência destas empresas para o setor privado tinha como objetivo a atração de capital e o necessário aumento de investimentos. O setor público, dadas as suas limitações fiscais, estava e ainda está impossibilitado de manter o volume de investimentos necessários.
Por isso, surpreende a existência de inúmeras ações nas quais se busca exatamente reproduzir uma prática que já se demonstrou fracassada no passado, isto é, o subsídio implícito nas tarifas decorrente de um reajuste insuficiente para manter as condições econômicas e financeiras necessárias para que as empresas mantenham a qualidade e o volume de seus investimentos.
Nestas ações o que se pede é algo que não tem apoio na legislação do setor, nem tampouco na Constituição Federal. Além da falta de base jurídica, as demandas, formuladas principalmente pelo Ministério Público, também não encontram apoio na realidade econômica do setor e do país.
De fato, as tarifas subiram mais do que a inflação desde o início da privatização, mas é preciso entender suas causas antes de tentar controlá-las de forma artificial. Duas razões são fáceis de apontar de partida: o aumento da carga tributária e dos encargos impostos ao setor e a natural elevação dos custos de energia comprada pelas distribuidoras.
Tais custos, impostos e energia, como estão fora do controle do gestor das distribuidoras, são, por contrato, repassados ao usuário do serviço público.
A carga tributária nacional é elevadíssima e no setor elétrico é ainda pior: cerca da metade do que o consumidor paga na sua conta de energia são impostos e encargos. Note-se ainda que no setor, um serviço essencial, a maior carga decorre do ICMS, um imposto que deveria obedecer a critérios de essencialidade.
O outro fator é o aumento do custo da própria energia comprada pelas distribuidoras, um aumento que pode ser chamado de natural. Seja porque os novos aproveitamentos de origem hídrica tendem a ser menos eficientes do que os atuais, seja porque as exigências crescentes decorrentes da proteção ao meio ambiente farão com que fontes alternativas de energia, mais caras que a hídrica, tenham crescente importância na matriz energética brasileira.
Apesar destas evidências, as demandas judiciais buscam a volta da indexação. Essa vinculação à inflação foi abandonada no Brasil para a maioria dos contratos após o Plano Real exatamente para impedir a perpetuação de uma memória inflacionária, e, principalmente, permitir que o sistema de preços relativos voltasse a refletir a realidade de cada setor.
Lembremos que no passado, antes da privatização, as tarifas eram, em tese, indexadas de forma a garantir um retorno fixo aos investimentos. Este procedimento foi abandonado, pois ficou comprovado que ele não estimulava a busca de maior eficiência. Por isso, adotou-se um sistema de regulação que visa exatamente induzir a busca de maior eficiência, e obriga a concessionária a dividir seus ganhos de produtividade com seus consumidores.
Em cerca de dez anos de privatização estes ganhos já foram devolvidos à sociedade e a melhoria da qualidade na prestação do serviço é uma realidade.
Em alguns casos – em Pernambuco e no Rio Grande do Norte -, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) suspendeu as decisões de primeiro grau e assegurou o equilíbrio econômico-financeiro do contrato e a própria qualidade do serviço prestado.
A motivação para esta decisão foi exatamente a necessidade de se preservar os contratos de concessão, pois a quebra desses contratos colocaria em risco o próprio serviço prestado pela concessionária. E em último caso, o maior prejudicado seria o próprio consumidor.
As ações que impedem a aplicação da Constituição Federal, isto é, a manutenção do equilíbrio econômico-financeiro do contrato, não trarão nenhum benefício ao consumidor, em nome do qual pretende atuar o Ministério Público, cujas ações acabam interferindo em ato jurídico perfeito, como os contratos de concessão, e desrespeitam o órgão regulador, que tem legitimidade e, principalmente, competência técnica para definir os reajustes e revisões tarifárias.
* Antonio Carlos Velloso Filho e Elena Landau são, respectivamente, advogado e sócio do Escritório de Advocacia Sergio Bermudes; e economista, consultora da Associação Brasileira das Concessionárias de Energia Elétrica (ABCE) e do Escritório de Advocacia Sergio Bermudes