Moedas da privatização
Encontra-se em discussão uma medida provisória estabelecendo a utilização do FGTS no processo de privatização
Armando Castelar Pinheiro e Elena Landau*, O Globo
09 de outubro de 1994
Encontra-se em discussão entre o Governo e as confederações de trabalhadores uma medida provisória estabelecendo a utilização do FGTS no processo de privatização. Inicialmente esta alternativa deverá ficar restrita às dívidas do FCVS com o FGTS, correspondentes a cerca de 12% do seu patrimônio. Essas dívidas seriam securitizadas pelo Tesouro e depois utilizadas na compra de ações de empresas estatais.
A importância dessa iniciativa transcende em muito os R$ 3,5 bilhões nela envolvidos. Do seu sucesso dependerá a utilização a curto prazo das moedas sociais na privatização, algo que vem sendo infrutiferamente tentado há quase dois anos. (São chamadas de moedas sociais as poupanças compulsórias dos trabalhadores administradas pelo Governo, incluindo, além do FGTS, o PIS/Pasep e o INSS.) Além disso, os termos em que esta participação for regulamentada moldarão a forma de utilização das outras moedas no futuro.
É difícil exagerar a importância do aproveitamento das moedas sociais no Programa Nacional de Desestatização (PND). Com elas será possível popularizar o programa, ampliando o apoio político e acelerando o processo de desmobilização do Estado. Será possível também distribuir os benefícios da valorização das ações das estatais entre muitos, diminuir o risco de re-estatização das empresas vendidas e estimular o desenvolvimento do mercado acionário. (Na Inglaterra, por exemplo, apenas com a venda da British Telecom logrou-se criar 2,25 milhões de novos acionistas.) Além disso, em uma segunda etapa, a utilização dessas dívidas na privatização pode ser um elemento decisivo para viabilizar a reforma da previdência social.
O principal benefício para os trabalhadores dessa transformação do FGTS será o aumento do rendimento dessa poupança que, hoje, de 3%, está multo abaixo do de outras aplicações. A substantiva melhoria da lucratividade das empresas estatais alienadas até aqui pelo PND indica que o potencial de ganho é substancial. Para o Governo esse processo também é benéfico, pois significa continuar o abatimento de seu passivo sem a necessidade de emissões monetárias. Além disso, os juros que o Governo paga pelos recursos do FGTS superam em muitos casos o retorno que ele é capaz de extrair de suas empresas.
O sucesso desta primeira utilização de moedas sociais no processo de privatização irá depender do modelo utilizado. Nesse sentido, as seguintes regras devem ser adotadas.
Duas modalidades de aproveitamento do FGTS na privatização deveriam ser estimuladas. A primeira, passível de rápida implementação, consiste em permitir que os funcionários de empresas incluídas no PND utilizem seu FGTS na aquisição das ações sendo alienadas. A experiência tem demonstrado que os trabalhadores têm dificuldade em bancar a compra das ações que lhes são oferecidas, ainda que o preço cobrado embuta um subsídio igual ou superior a 70%. Com a inclusão de empresas de capital intensivas no PND, que é a tendência, esse problema deve se agravar consideravelmente. A utilização do FGTS na compra de ações evitaria que a meta de maior participação dos trabalhadores na capital das empresas se frustrasse.
A segunda modalidade a ser privilegiada é a utilização das moedas sociais no PND através de fundos de investimento. Os fundos permitem diversificar os riscos financeiros e reduzir os custos de transação, que seriam bastante elevados de outra forma, principalmente para aqueles com menos recursos. Afinal, só o FGTS tem 47,4 milhões de contas. A experiência do Leste Europeu demonstra a preferência dos indivíduos por esta modalidade de aplicação, principalmente em se tratando de vendas de ações a preços variáveis.
A experiência dos antigos países comunistas também mostra, não obstante, a necessidade de regulamentações relativamente rígidas para as operações desses fundos, sob o risco de que, como lá aconteceu, sua má gestão leve à dilapidação do patrimônio dos trabalhadores. Se algo semelhante ocorrer no Brasil, toda a sobrevivência do novo sistema pode ficar comprometida. O modelo de regulamentação adotado no Chile para as Administradoras de Fundos de Pensão, que desempenharam um papel semelhante ao que se pretende aqui para as moedas sociais, pode ser bastante útil na definição dessas regras.
Neste sentido, é particularmente importante que o sistema seja gerido, pelo setor privado e que haja opção entre vários fundos. Há duas razões básicas para isso. Primeiro, os indivíduos são diferentes, sendo alguns mais dispostos (ou livres) que outros a correr riscos em troca de um maior retorno esperado. Não dar opção significa aprisionar as pessoas em perfis de aplicação incompatíveis com suas preferências. O segundo motivo diz respeito à transparência e à eficiência na gestão dos fundos. Se não é possível trocar de fundo caso este não esteja sendo bem administrado, hão há incentivo para o aplicador procurar saber se seus recursos estão sendo bem investidos, nem há estímulo para o gestor do fundo procurar maximizar o retorno dos recursos que administra.
O melhor exemplo disso é o próprio FGTS do jeito que funciona hoje em dia. Como não podem fazer nada para mudar sua gestão, os trabalhadores nunca se preocuparam em obter informações sobre como seus recursos são investidos. Como não correm o risco de perder aplicadores, os gestores do FGTS podem se dar ao luxo de investir em projetos sem retorno. Se os trabalhadores tivessem tido a opção de retirar-se do FGTS, a situação nunca teria chegado aonde chegou.
Outra questão importante diz respeito à possibilidade de os trabalhadores retirarem ou não seus recursos do sistema, uma discussão paralela mas diferente da opção de trocar de fundos. Aqui há, também, duas questões a considerar. A primeira, de caráter mais conjuntural, é de que, influenciados pelas altas taxas de juros de curto prazo, pela má gestão do FGTS no passado e receosos de que os novos fundos também não tenham bom desempenho, os trabalhadores optem por resgatar imediatamente suas aplicações. Dada a pequena dimensão do mercado acionário brasileiro, o impacto disso sobre o preço das ações poderia ser muito significativo, reduzindo o valor dos fundos e incentivando novas retiradas. Parece razoável, portanto, que em um primeiro momento sejam colocados limites às retiradas dos novos fundos.
A segunda questão diz respeito ao funcionamento em regime desses fundos. Uma linha de analistas defende que mesmo a longo prazo haja restrições à possibilidade de os aplicadores resgatarem seus recursos, nos moldes do que hoje ocorre com o FGTS. O principal argumento para isso reside na suposição de que as pessoas são “míopes” e na ausência de restrições tenderiam a consumir suas poupanças hoje compulsórias. O princípio neste caso é o mesmo que norteia as contribuições previdenciárias. Neste sentido, pensamos que uma decisão a respeito deve ser tomada em conjunto com a reforma do sistema de seguridade social.
* Armando Castelar Pinheiro é assessor da diretoria do BNDES e Elena Landau é diretora da área de desestatização do BNDES