Profissionalização do esporte e a MP 1.926/99
O futebol estava em meio a um processo de renovação até a edição da MP 1.926/99, que regulamentou a gestão das entidades de prática esportiva
Elena Landau*, O Globo
06 de dezembro de 1999
O futebol brasileiro estava em meio a um processo de extraordinária renovação até a edição da MP 1.926/99 que regulamentou a gestão das entidades de prática esportiva. Desde a Lei Zico, e especialmente após a Lei Pelé, teve início um movimento inédito de associações comerciais e investimentos nos esportes no Brasil. Na grande maioria dos casos, o processo de profissionalização do futebol deslanchou através de parcerias de investidores privados com os clubes. Tais parcerias procuraram essencialmente explorar comercialmente os direitos gerados pela exploração da marca (nome e/ou símbolo dos clubes de futebol) e dar condições financeiras para que os clubes administrem profissionalmente seus departamentos esportivos. Havia sido finalmente encontrado o caminho para canalizar recursos para o esporte número 1 do País.
Para a valorização da marca alguns passos são fundamentais. Primeiro, o pagamento de luvas ao clube pela cessão temporária da exploração dos direitos comerciais e/ou a securitização dos recebíveis. Este aporte de recursos tem sido normalmente utilizado pelo clube para a quitação de dívidas, inclusive com a Receita Federal e a Previdência, e para a construção ou reforma de centros de treinamento e escolinhas de futebol, visando à formação de novos atletas. Segundo, a criação de uma empresa com propósito de organizar profissionalmente a atividade de comercialização de transferência dos atletas formados pelos clubes. Terceiro, a construção de estádios ou arenas modernos que incluem uma gama de serviços de apoio e entretenimento.
A combinação das ações acima propícia maior transparência nas operações de licenciamento e nas transações envolvendo atletas e investimentos maciços em infraestrutura esportiva (estádios, shoppings,…) criando novos empregos tanto na construção civil quanto na prestação de serviços (por exemplo, criação de áreas de lazer em torno dos estádios) relacionados ao futebol. Por um e outro motivo, cresce a arrecadação tributária derivada do esporte.
Na Inglaterra, as receitas geradas em dias de jogo, que incluem toda uma gama de serviços, já respondem por 36% do total, igualando os direitos comerciais e superando as receitas derivadas de transmissão de jogos pela TV, sendo que naquele país os valores anuais de contratos com as redes de televisão em 1999 são quase cinco vezes maiores que os do Brasil. A título de comparação, vale a pena mencionar o caso do Atlético Mineiro. Embora responsável pela maior média de público do campeonato brasileiro (33 mil pagantes na primeira fase, sendo que nos jogos em casa esta média atinge 55 mil, e 70 mil nas semifinais) as receitas de bilheteria auferidas são insuficientes (a receita bruta obtida em toda a primeira fase do campeonato não cobre uma folha mensal do departamento de futebol) e, descontadas as taxas devidas pelos usos dos estádios oficiais, o recebimento líquido não chega a 40% da arrecadação total da bilheteria. O exemplo mostra a importância da construção de estádios próprios com serviços acoplados, somente possível com a participação de investimentos privados.
Este movimento de profissionalização do futebol tem consequências positivas não só para o esporte como para o país. Além de aumentar a arrecadação de impostos e criar novos empregos, favorece a parceria dos clubes e dos investidores com escolas e ONG’s na formação de novos atletas, com apoio educacional, alimentar, médico, familiar e psicológico, dando maiores perspectivas às crianças e aos jovens através da prática esportiva. Cria também condições financeiras para a renegociação das dívidas fiscais e previdenciárias (estima-se que os cerca de 500 clubes brasileiros tenham uma dívida acumulada superior a 1 bilhão de reais com o Fisco e a Previdência).
A MP nº 1.926/99, no entanto, editada com o intuito de regulamentar a participação de investidores nos clubes de futebol, mudou este cenário ao paralisar o movimento de profissionalização do futebol. Ela tinha como objetivo adaptar a legislação brasileira aos regulamentos da Fifa. A cláusula 7 do estatuto da Fifa exige que somente uma associação esportiva possa ser propriedade de uma mesma sociedade ou suas afiliadas. Tal regulamento pretende garantir a independência dos clubes na gestão do esporte em relação aos seus investidores ou proprietários. A MP 1.926, no entanto, foi além da simples aplicação do regulamento da Fifa ao limitar, no seu artigo 90 A, não apenas a participação societária em diferentes agremiações esportivas mas restringir qualquer influência dos investidores nos clubes.
Pergunta-se: como se define influência? Enquanto esta questão não for esclarecida, os investidores não retornarão. As experiências que já existem no futebol onde uma mesma organização participa de atividades pertinentes a diferentes agremiações esportivas serão revistas? Refiro-me, por exemplo, a patrocinadores comuns a mais de uma equipe, como o caso do Rio Grande do Sul, ou a administração de elenco de jogadores, como o caso da Parmalat no Palmeiras e no Juventude, ou ao contrato que associa o Clube dos Treze à Rede Globo. Todos estes exemplos hoje estão em desacordo com a MP, que não tem caráter retroativo mas que não legisla sobre estes potenciais casos que o Governo supostamente qualifica de conflito de interesses. Por acaso, a experiência da Parmalat tem trazido consequências negativas para o futebol brasileiro?
A MP que regulamentou a participação de investidores nos clubes de futebol abortou o movimento de profissionalização do futebol porque a mera gestão da marca por uma empresa especializada em marketing esportivo, mesmo que este contrato de gestão não gere necessariamente intervenção nas decisões do departamento de futebol, poderia ser considerada uma influência. Uma consequência imediata da limitação imposta pela MP é a perpetuação da distância existente entre os times de primeira linha e os demais, já que o número de investidores é muito inferior aos 24 clubes que disputaram a Primeira Divisão do Brasileiro, sem mencionar os 500 times que existem no Brasil. No momento atual a gravidade da situação é tal que os times de elite — aqueles que têm sobrevivência financeira assegurada — se limitam a menos de meia dúzia. Não se pode desprezar também os enormes impactos sobre os desequilíbrios regionais que ela causa. Tendo que escolher apenas um clube, é natural que o investidor se volte para o eixo Rio-São Paulo, que tem maior potencial comercial.
A parceria com investidores está longe de suscitar necessariamente conflito de interesses. O Campeonato Brasileiro deste ano foi muito criticado, sendo que todas as mudanças de regras e resultados foram sugeridos pelos próprios dirigentes sem interferência dos investidores. Ao invés de limitar a saudável entrada de capitais no futebol, deve-se pensar na criação de um órgão para a regulação dos conflitos caso eles venham a ocorrer. De outra forma, vamos perpetuar o amadorismo, a falta de transparência, a dependência dos clubes do dinheiro público, sem falar no que se perde de positivo para o país em termos de geração de empregos e impostos.
* Elena Landau é economista