Podemos reagir
Desafio da nova presidente no setor elétrico: enfrentar a informalidade. País perde quase 8 bilhões de reais por ano com “gatos”
Elena Landau*, O Globo
14 de novembro de 2010
Um dos desafios da nova presidente no setor elétrico será o de enfrentar a informalidade. Como mostrou reportagem do GLOBO, o país perde quase 8 bilhões de reais por ano com as ligações clandestinas de energia, o famoso “gato”. O problema, no entanto, ultrapassa os prejuízos econômicos com a redução de arrecadação pelos governos, o aumento no valor das “contas” para o consumidor, ou a redução do lucro das empresas e de ser, segundo o senso comum, um problema social. É um problema cultural que finalmente passou a ter voz com a campanha “Ilegal. E daí?” que mostra a revolta diária dos cidadãos do Rio de Janeiro contra os desrespeitos a leis e normas.
No caso de energia elétrica, o desrespeito ou apropriação indevida e ilegal é mais complicado de se perceber por se tratar de um serviço intangível por natureza. Não é evidente como um carro, por vezes oficial, estacionado nas calçadas, por exemplo. A energia não pode ser vista ou tocada ou sentida. A ausência de um bem palpável instalou uma cultura de não cuidar, de perceber energia como um recurso natural infinito e que seu acesso ilegal não configura crime. Além disso, como no passado a energia era fornecida exclusivamente por empresas estatais, criou-se no imaginário do fraudador a ideia de que ninguém será prejudicado. Raciocínio semelhante ao do sonegador de impostos. Resultado: o furto de energia (o famoso “gato”) pode ser encontrado em todas as classes sociais e nas diferentes áreas de concessão, não é exclusividade do pobre, como a tradicional fotografia de um emaranhado de fios em residências de baixa renda deixa transparecer.
Atos ilícitos, como o “gato”, que ultrapassam a fronteira da ilegalidade e clandestinidade, são considerados por muitos como normais. Recente cena da novela “Passione”, a dona de uma pensão pede a um amigo para fazer gambiarra para “pegar” energia do vizinho e é pega em flagrante por sua neta. Em resposta à indignação da menina, a avó se justifica dizendo que não tem dinheiro para pagar todas as contas da pensão e que precisa de energia elétrica para continuar com seu negócio. Em seguida, “oferece a neta” ao amigo como pagamento pelo serviço prestado. Passadas algumas semanas, o abuso contra a neta foi punido, mas nada se falou sobre o ilícito – penal – do furto de energia. Para quem viu a cena fica a mensagem que fazer “gato” caso não tenha dinheiro para pagar contas é absolutamente compreensível.
Por mais indignados que consumidores legais e adimplentes possam ficar ante esta cena, ela reflete a realidade. Os órgãos de defesa dos consumidores, o Ministério Público e o Juizado de Pequenas Causas na maioria das vezes se posicionam contra a empresa concessionária, ignorando quão grave é passar ao usuário ilegal essa sensação de impunidade. O raciocínio vigente passa a ser que “eu furto porque não tenho dinheiro e, como se trata de serviço público essencial, dificilmente a Justiça vai me deixar ficar sem luz”. A pergunta que deve ser feita é se esse mesmo tratamento seria dado caso a dona da pensão da novela decidisse assaltar um supermercado para fornecer a alimentação aos seus hóspedes. A prática de furto é a mesma, mas a punição é completamente diferente.
No Rio de Janeiro a Light (distribuidora de energia) perde por ano, com essa prática ilegal, o equivalente a energia consumida por todo o estado do Espírito Santo ou a energia gerada por Angra 1 ou 5 anos de fornecimento de luz para Nova Iguaçu. Se, por um passe de mágica, a ilegalidade da rede elétrica acabasse, o consumidor pagaria uma conta de luz 17% menor. Quem não paga a conta naturalmente gasta mais energia e gasta mal. Em tempos de preocupação com crescimento sustentável e eficiência energética, não se deve passar a mão na cabeça do perdulário e do criminoso.
Ilegal. E daí? Daí que é assim que a cidadania, a ética e o respeito se perdem, enfim, a sociedade se perde. O santo paga pelo pecador. Daí que podemos reagir. Daí que o Judiciário pode contribuir para reduzir a impunidade. É hora de arrumar a casa.
* Elena Landau é economista, advogada e integrante do Conselho de Indústrias Reguladas da Associação Comercial do Rio de Janeiro.