Insegurança jurídica e necessidades de hidrelétrica

Insegurança Jurídica e Necessidades de Hidrelétrica

No início dos anos 90, novo modelo para o setor elétrico começou a ser definido. Reestruturação era parte da agenda de Reforma do Estado

Elena Landau*, revista Brazilian Business
Novembro 2006

No início dos anos 90, um novo modelo para o setor elétrico começou a ser definido no Brasil. A sua reestruturação era parte da agenda de Reforma do Estado, que marcou a economia mundial nesse período. Em linhas gerais, o novo modelo seguiu uma tendência internacional baseada em três vertentes principais:

(i) desestatização, (ii) desverticalização das atividades e (iii) marco regulatório calcado no princípio da eficiência. Essas mudanças tinham maior significado aqui do que no resto do mundo, pois o setor elétrico brasileiro funcionava até então basicamente a partir de grandes empresas estatais integradas, quer federais quer estaduais, sendo a presença do capital privado mínima

. A presença estatal no setor elétrico foi bastante relevante para a sua expansão até os anos 80, quando a crise fiscal termina por colocar limites intransponíveis à capacidade do Estado em investir. Até então, com a ausência de restrições fiscais, o investimento público permitiu um crescimento contínuo do setor capaz de acompanhar o forte ritmo de desenvolvimento econômico do período.

Em consequência do esgotamento deste modelo, atrair capitais privados passou a ser uma necessidade inadiável, o que ocorreu pela venda de ativos através do processo de desestatização. Já a expansão do sistema por meio de novas concessões deveria ficar a cargo do setor privado. Para dar mais segurança aos novos investidores (e também aos usuários do serviço), era necessária adequação institucional do setor, redefinindo principalmente as funções de planejamento e a regulação, até então concentrados no Poder Executivo.

Ou seja, para o redesenho do setor elétrico, foi preciso, portanto, reformar o Estado brasileiro para que pudesse passar a cumprir novas funções de Estado regulador, ao mesmo tempo em que reduzia sua — intervenção na atividade económica. A própria Constituição Federal de 1988 já havia estabelecido a base jurídica necessária para esta reforma que parecia, pelo menos para os críticos da desestatização, uma imposição de um modelo econômico neoliberal.

Entretanto, como se sabe, à desestatização foi interrompida sem que a transferência para o setor privado dos ativos de geração estivesse completada, o que significa que a grande parte do parque gerador se encontra nas mãos do Estado. Ou seja, há hoje a coexistência entre setor privado e setor público. De fato, os resultados dos leilões de energia nova mostram uma forte parceria entre empresas privadas e as empresas do Sistema Eletrobrás.

Mas não resta dúvida de que a expansão na geração com base em empreendimentos exclusivamente privados está muito abaixo do que se esperava há dez anos, quando a privatização foi iniciada. Várias são as razões para estes resultados, entre elas: o risco regulatório que marcou o início do processo, hoje já bastante reduzido; a concorrência com o setor público, que mostrou demandar um retorno para os projetos muito inferior ao custo do capital privado; a lentidão e a insegurança na concessão de licenças ambientais; e, por fim, a insegurança jurídica que afeta as relações contratuais na nossa economia. Estas questões podem explicar porque temos mais de 23 mil Kw de empreendimentos outorgados entre 1998 e 2005 que não iniciaram sua construção, enquanto pouco mais de 3 mil Kw estão efetivamente em construção.

O risco de um empreendimento de longo prazo deve ser avaliado para toda a existência do projeto, que pode chegar, por exemplo, a 30 anos. Por isso, o arcabouço regulatório e a intervenção do Judiciário devem ter coerência e permanência no tempo. No entanto, talvez em função ainda de pouca familiaridade com a nova regulação e questões ambientais, tramitam no País diversas ações que buscam rever decisões dos órgãos reguladores no Judiciário. Ainda que a jurisprudência seja amplamente majoritária no sentido de repudiar a intervenção deste Poder sobre o mérito de atos administrativos, há inúmeros casos, onde, em nome do interesse público, o Judiciário busca rever tarifas legalmente homologadas ou até mesmo interferir em contratos privados de compra e venda de energia. No entanto, não se pode, em nome da supremacia do interesse público1 , ignorar todo um comprometimento de políticas públicas, como aquelas que definiram a reforma do setor elétrico brasileiro.
Em geral, estas decisões em instâncias inferiores, têm sido revertidas no Supremo Tribunal de Justiça, tendo como motivação exatamente a necessidade de se preservar os contratos, pois de outra forma não se viabilizarão novos investimentos privados no setor, e o consumidor, a quem se busca defender, acabará sendo o maior prejudicado, como se viu na experiência do racionamento.
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1. Em pesquisa realizada junto a vários magistrados, LAMOUNIER, Be SOUZA, A confirmam que há base para esta incerteza jurídica, pois, em seu estudo, apenas 7% dos membros do Judiciário se disseram preparados para julgar contratos independentes de considerações sociais e 61% deles consideram que os juízes desempenham uma função social e que a necessidade de reduzir desequilíbrios sociais justifica uma interferência nos contratos. As elites brasileiras e o desenvolvimento nacional: fatores de consenso e dissenso. 2002. São Paulo. Instituto de Estudos Econômicos, Sociais e Políticos de São Paulo.


* ELena Landau é economista, bacharel em Direito e consultora da ABCE — Associação Brasileira de Concessionárias de Energia Elétrica

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