Moderno ’versus’ arcaico

Moderno ’versus’ arcaico

Tenta-se atribuir ao presidente Collor as transformações recentes da economia brasileira, tornando-as independentes da vontade da sociedade

Elena Landau*, Jornal do Brasil
10 de setembro de 1992

Na última semana importantes jornais do pais reproduziram trechos de antigos discursos do vice-presidente Itamar Franco que claramente procuravam reforçar uma margem de político arcaico em contraposição ao paradigma da modernidade que representada o presidente Collor. Reproduzir frases soltas, fora de contexto, escritas há mais de dez anos atrás é desleal e parcial. Em 1983 não só o atual vice-presidente mas nove em cada dez economistas eram críticos do acordo com o FMI e da política de ajuste imposta pelo Fundo.

Além disso, este tipo de abordagem traz implícita a conclusão de que o projeto de modernidade é um projeto de um dono só. Tenta-se atribuir exclusivamente ao presidente Collor as transformações recentes da economia brasileira, tornando-as independentes da vontade da sociedade.

Mais importante talvez é lembrar que o dilema Collor-moderno versus Itamar-arcaico é um falso dilema. Em primeiro lugar, porque esta não é a questão que está em jogo. Reflete apenas uma tentativa de desviar a atenção do ponto central da crise atual que é a falta de legitimidade do presidente da República para permanecer em seu cargo, já que desde as primeiras denúncias ele não for capaz de convencer a população do seu não envolvimento nas atividades do Sr. Paulo Cesar Farias. Em segundo lugar, sem credibilidade o atual presidente não tem como levar a cabo as políticas modernizantes que algumas pessoas parecem acreditar depender exclusivamente dele.

Neste contexto de total descrédito, este governo não tem como aprovar o prometido ajuste fiscal. Aqui também é preciso isolar o discurso da prática: não existe um projeto de reforma fiscal; foi colocada à disposição do Congresso uma proposta denominada “subsídios para uma reforma fiscal” que até o momento não recebeu, mesmo da parte dos parlamentares governistas, o empenho necessário para transformá-la em uma proposta de emenda constitucional ou em um projeto viável capaz de ser votado ainda este ano.

Com a continuidade do atual governo, há tendência a um agravamento da situação de anarquia fiscal, pois não há um ambiente que permita uma cruzada contra a sonegação, tanto como consequência das denúncias não respondidas de corrupção quanto pela volta à filosofia do “é dando que se recebe”. Além do ajuste fiscal, pode-se dizer adeus à reforma do Estado. Descentralização dos encargos e política social eficiente não combinam com a prática do fisiologismo, que caracteriza o grupo de apoio ao presidente e que serve de munição anti-impeachment. Talvez seja exatamente a permanência de Collor que venha a comprometer o avanço na direção do que convencionou-se chamar de modernidade.

A sociedade brasileira vai continuar exigindo mudanças que visam à modernização e este processo não depende de um homem só Com boa vontade, pode-se entender este recente patrulhamento em torno do pensamento do vice-presidente como uma demonstração, ainda que inconsciente, de que a sociedade saberá reagir à uma tentativa de volta ao passado, se este for seu desejo.

Um resultado positivo desta classificação de atitudes (arcaica versus moderna) foi ter trazido consigo a discussão do concerto de modernidade, que até o momento vinha sendo resumido no binômio abertura comercial e privatização, já que a reforma administrativa foi desastrosa e o ajuste fiscal estrutural não recebeu o empenho esperado. Nos últimos anos importantes tabus nestas arcas foram superados mas a opção liberal acabou tornando-se intocável. Qualquer sugestão de ajuste aos programas de privatização ou de liberalização comercial é vista como uma força contraria, mesmo que a intenção seja a oposta.

O fato é que à correta opção pela modernidade não garantiu ainda uma ação modernizadora mais ampla que permitisse o acesso de cada vez mais pessoas aos benefícios de uma economia mais eficiente. Na área da educação e saúde não se pode de forma alguma afirmar que o Brasil tenha encontrado na era da modernidade. A preocupação de que a agenda liberal venha acompanhada de uma agenda social é legitima, não demagógica nem atrasada.

De todo modo, mudar o foco da discussão para o dilema do moderno-arcaico é cair no jogo do presidente da República que, ao invés de dar provas cabais de sua inocência, atribuí às forças contrárias ao “seu” projeto um golpe para retirá-lo do poder. Ainda que o vice-presidente tenha ideias distintas do atual presidente sobre os caminhos da economia brasileira, não são elas que determinarão a legitimidade do processo de impeachment. Esta não é uma crise econômica, é uma crise moral.


*ELena Landau é economista e assessora da PSDB

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