Privatização: a verdadeira e a falsa

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Privatização: a verdadeira e a falsa

Venda fragmentada de ativos do setor elétrico criou modelo anfíbio

Elena Landau*, O Estado de S.Paulo
09 de setembro de 2001

Quando a população se viu ameaçada de enfrentar um racionamento de energia, o primeiro candidato a receber o ônus da responsabilidade foi a privatização do setor elétrico. Afinal, um dos argumentos frequentemente utilizados para defender a privatização sempre foi o do esgotamento da capacidade de investir do governo.

O argumento é certamente verdadeiro — é socialmente preferível o governo investir em educação básica e saúde, por exemplo, ao governo investir em áreas nas quais existe capital privado disponível.

Mas para que o setor privado invista, em especial nos serviços de utilidade pública, necessariamente regulados e supervisionados pelo Estado, não basta alienar a propriedade — é preciso atentar para a lógica de suas decisões e criar um arcabouço legal e regulatório adequado.

Na energia nada disso ocorreu. Primeiro, não houve uma privatização do setor elétrico como um todo. Ao contrário do que se viu em outros setores como siderurgia, telefonia ou com as ferrovias, ocorreram apenas vendas isoladas de ativos, em especial distribuidoras de energia.

O processo iniciou-se pela venda das distribuidoras federais, Light e Escelsa, e ganhou a adesão posterior das distribuidoras estaduais. No entanto, 80% da produção do insumo do setor — a geração de energia elétrica — ainda se encontra nas mãos do Estado, na verdade através de monopólio de uma única empresa.

Segundo, a privatização, parcial e manca, foi, no contexto da crise de energia, acompanhada por um aumento da participação do setor público. A Petrobrás já deve ser a maior empresa de energia do País, operando inclusive de forma verticalizada. E acaba de ser criada a Comercializadora Brasileira de Energia Emergencial (CBEE) mais uma empresa estatal destinada a cuidar das operações comerciais de energia.

Terceiro, e certamente mais importante, foi deixada de escanteio a definição de um arcabouço regulatório, que deveria ser o coração de uma desestatização de serviços públicos. Na prática, a regulação vem sendo definida ao longo do tempo, de acordo e ao sabor das circunstâncias, e na confluência de um emaranhado de órgãos burocráticos (Aneel, ONS, MAE, MME, CNE, só para citar alguns).

Só para se ter uma idéia, apenas à Aneel já emitiu, no seu curto período de vida, mais de 300 resoluções. No fundo, o governo nunca conseguiu implementar um plano de desestatização sistemático para o setor elétrico.

Não existe, por exemplo, uma Lei Geral que possa orientar o funcionamento do setor em um novo ambiente competitivo, como no caso da telefonia. Não por falta de discussões, de estudos especializados ou de recomendações — o que faltou foi implementação.

O setor elétrico está escorado numa ambiente legal confuso, lastreado em resoluções, contratos específicos e interpretações de órgãos reguladores e/ou operacionais que, por não terem força de lei, provocam um grau de incerteza que não ajuda nas decisões de investimento. Foi preciso que a crise de energia se materializasse para que o governo reorganizasse o comando do setor na Câmara de Gestão de Energia que na prática assumiu a função de alguns agentes do setor. Um bom exemplo destas anomalias é dado pelo perfil de investimento das empresas distribuidoras.

O investimento foi expressivo e cresceu muito após a privatização. Foi, no entanto, concentrado na área de sua área de concessão, visando melhorar a eficiência do serviço prestado e atingir as metas impostas pelo edital de venda.

As distribuidoras não investiram na geração de energia, investimento este que faria sentido para se posicionarem melhor no ambiente competitivo que estará se iniciando em breve, porque não tiveram condições regulatórias e equilíbrio tarifário que lastreasse o investimento.

O fato é que a venda fragmentada de ativos do setor elétrico terminou por criar um modelo anfíbio, onde o mundo privado distribui energia produzida basicamente pelo mundo estatal em um ambiente com regras pouco claras.

As entidades regulatórias, mais por hábito do que por decisão, agravam as contradições, sendo complacentes com o setor público mas rígidas com o setor privado.

Tivesse sido uma companhia privada a não cumprir com seus compromissos no MAE, como fez Furnas, a Aneel teria certamente agido com menos passividade. Modelos anfíbios não são necessariamente ruins, desde que as partes atuem de forma similar.

Se o governo tivesse mantido o controle das grandes geradoras como Chesf, Furnas e Eletronorte, mas ao mesmo tempo aberto seu capital na Bolsa de Valores, imposto objetivos de rentabilidade iguais aos que valem para o setor privado, e forçado suas empresa a aderir ao novo modelo, e a regulação sendo aplicada com mais isonomia, teríamos uma lógica comum a todo o setor.

Das duas uma: ou se privatiza o complexo Eletrobrás ou se uniformizam as regras do jogo. Ao meu ver, está mais do que claro que o governo brasileiro não vai privatizar o complexo Eletrobrás. Então não percamos tempo: que as estatais funcionem como se privadas fossem, evitando desperdícios e utilizando critérios eficientes de gestão.

Se foi possível mudar a Petrobrás, por que não seria possível mudar a Eletrobrás? A continuar do jeito que está, o modelo anfíbio correrá o risco de não sobreviver nem na terra nem no mar.

* Elena Landau, economista, foi diretora de Privatizações do BNDES

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