Racionamento e tarifas de energia elétrica

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Racionamento e tarifas de energia elétrica

Há resistência em permitir que o sistema de preços funcione para arbitrar a escassez. Tesouro pode subsidiar tarifas para consumidores, mas esse custo vai aparecer

Elena Landau*, O Estado de S.Paulo
07 de outubro de 2001

O sistema energético brasileiro combina distribuidoras privadas e geradoras estatais. Ideologias, prioridades e concepções da sociedade à parte, propriedade e preços não se deveriam, no entanto, confundir. Uma estatal produzindo ou distribuindo energia deveria cobrar de seus consumidores a mesma tarifa que cobraria se fosse de propriedade privada.

Se não o faz, estará subsidiando consumidores à custa do seu proprietário, a saber, o Tesouro Nacional que representa todos nós. Algo que a sociedade pode até desejar, mas que precisa ser explicitado e discutido como todo subsídio deve ser – uma decisão de beneficiar uns à custa de outros, no caso, consumidores de energia versus contribuintes.

Energia elétrica é uma concessão pública e como tal um bem por força de lei regulado. Na esfera da geração, energia elétrica é uma commodity – um bem homogêneo, produzido a partir de tecnologias e empresas diferentes que competem entre si.

Na esfera da distribuição, no entanto, é um monopólio quase que natural – o consumidor só tem uma companhia de quem comprar luz, mesmo que a energia revendida por esta companhia venha de várias fontes.

Para evitar que a distribuidora exerça poder de monopólio, a agência reguladora (Aneel) deve assegurar que o preço cobrado aos consumidores seja o preço da geração mais uma margem normal de retorno que garanta o bom funcionamento e os investimentos das distribuidoras, sejam elas privadas ou públicas.

Deveria também evitar o erro oposto – o de não repassar custos externos, estrangulando as distribuidoras e subsidiando o consumo de energia. O conceito, em si, é claro: a formação de preços da distribuição deve ser neutra – preço de geração mais margem adequada de retorno previamente estabelecida.

E como deveria ser a formação de preços na geração? De novo, o mesmo princípio se impõe: evitar situações artificiais, assegurando que o preço da commodity energia resulte do livre jogo da oferta e da demanda. O aluno do primeiro ano da faculdade de economia aprende que, em concorrência perfeita, na qual não existe nenhum poder de monopólio, e portanto na qual se consegue o maior bem-estar possível para os consumidores, o preço iguala o custo marginal de produção.

As várias empresas aumentarão sua produção até o ponto em que não se justifica mais fazê-lo – quando o ganho marginal de um quilowatt (o preço) for igual ao custo marginal de produção. Umas ganharão mais, outras menos, dependendo da eficiência de cada uma, mas a oferta se estabiliza nesta condição. O objetivo da agência reguladora na esfera da geração é o de criar as condições institucionais para o livre funcionamento do mercado competitivo.

Nosso problema é que não deixam o sistema de preços funcionar. Veja-se o que acontece na distribuição. A população percebe apenas a tarifa que transparece em sua conta de energia sem se conscientizar que tal tarifa é apenas o elo final de uma longa cadeia de preços.

Começa na compra de energia, adicionam-se impostos e encargos e só depois é somada a parte que cabe à distribuidora. Nos últimos anos, os custos das distribuidoras aumentaram por causa da elevação da tarifa de Itaipu e da desvalorização cambial, afetando o preço da energia comprada, e do aumento da cota CCC.

A Aneel, pensando em poupar os consumidores, não fez o repasse como previsto nos contratos de concessão. O resultado foi uma forte redução de margens nas distribuidoras, inviabilizando seus investimentos.

O mesmo quadro aparece na geração. Ainda não temos um modelo competitivo em vigor. Como assegurar que preço seja igual a custo marginal se o próprio mercado atacadista de energia (MAE) não funciona? O pior é a noção de que as usinas com investimento já depreciado devem cobrar menos do que aquelas com investimento ainda por depreciar.

Em um mercado competitivo, o preço é sempre dado pelo custo marginal. Se um produtor consegue melhor margem do que outro ao preço de equilíbrio, ninguém pensaria em impor-lhe um preço diferenciado para reduzir sua margem. Há que se remunerar o capital investido, porque do contrário ninguém se proporá, a menos que subsidiado pelos contribuintes, a investir no setor.

O ponto parece óbvio, mas infelizmente não é. Volta e meia argumenta-se que as geradoras estatais devem ter seus preços controlados enquanto as geradoras privadas são induzidas a participar gradualmente de um mercado livre. Estatais supostamente poderiam vender energia abaixo do preço de mercado porque se trata de energia velha, já depreciada, colaborando para manter uma tarifa média baixa na geração.

Na prática, isto implica apenas subsídio do Tesouro Nacional, isto é, dos contribuintes para os consumidores, além de prejudicar, por exemplo, a capacidade de investimento de Furnas. É óbvio que o Tesouro pode subsidiar tarifas para beneficiar consumidores ou até mesmo investir em projetos com retorno negativo desde que disponha de recursos orçamentários.

Mas não nos iludamos – o custo aparece mais cedo ou mais tarde. Ainda recentemente as benesses populistas consolidadas através da CRC transferiram das estatais para o Tesouro a modesta conta de US$ 22 bilhões. No mundo privado não há subsídio possível.

Em última instância, existe uma resistência do governo e do regulador em permitir que o sistema de preços funcione para arbitrar a escassez. Um exemplo disso foi dado na administração da crise recente causada por falta de chuvas e de investimentos. Em face do excesso de demanda, respondeu-se impondo um racionamento sem mexer nos preços (os reajustes de contas refletem apenas efeitos passados e não a crise de oferta).

É claro que uma recuperação imediata de todo o impacto da crise sobre as tarifas geraria um aumento muito elevado, mas existem mecanismos que permitem um diferimento desses aumentos ao longo do tempo ou aumentos diferenciados por classe de consumo.

O importante é permitir a sinalização da escassez através dos preços, incentivando investimentos e induzindo a sociedade a consumir menos sem os artificialismos de um racionamento.

Nenhum país pode aceitar conviver com uma restrição permanente de consumo de energia. Menos energia significa menos crescimento e menos bem-estar. Nossa crise deve ser solucionada não pelo controle artificial da demanda, mas pelo crescimento da oferta. O racionamento mostrou a todos que a energia mais cara é a aquela que não se tem.


* ELENA LANDAU É economista, foi diretora de Privatizações do BNDES

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