Sonhos não envelhecem
Este ano foi cruel com as crianças. 170 mil jovens e adolescentes ficaram órfãos na pandemia, sem contar a perda de tios, madrinhas e avós que, muitas vezes, faziam o papel dos verdadeiros cuidadores
Elena Landau*, O Estado de S.Paulo
24 de dezembro de 2021
“Ano passado eu morri, mas esse ano não morro.” Foi com Belchior que terminei minha última coluna do ano passado. Achava que o pior tinha passado. Mas fechamos 2021 ainda piores, em todos os sentidos.
Mortes ultrapassaram o jamais imaginado número de 600 mil. A pobreza aumentou, desigualdade se aprofundou, desmatamento atingiu novo recorde, inflação foi a dois dígitos, a economia está sem comando e o país desgovernado.
Mas é Natal: bora renovar esperanças, buscar meu lado Pollyanna e ter desejos para o ano-novo. Escrevi minha cartinha com meu neto. Ele está cada dia mais feliz, saudável e esperto. Bem distante da realidade de milhões de crianças neste Brasil. Inspirada na bênção que é tê-lo ao meu lado, eu fiz meu pedido ao Papai Noel: olhe por elas.
Este ano foi cruel com as crianças. 170 mil jovens e adolescentes ficaram órfãos na pandemia, sem contar a perda de tios, madrinhas e avós que, muitas vezes, faziam o papel dos verdadeiros cuidadores.
Foram quase 200 dias sem aulas e o ensino híbrido não funcionou para boa parte das crianças. O retrocesso foi grande, anos de aprendizado perdidos, enorme evasão escolar. Como já partimos de um patamar baixo em qualidade e aproveitamento de ensino, o fosso entre pobres e ricos foi ampliado.
A violência doméstica também aumentou com o confinamento. Os miúdos, além de serem atacados, assistiram suas mães sendo ameaçadas com frequência. Os principais agressores estão dentro de casa.
A tragédia vem de longe. Pesquisa inédita da Defensoria Pública do Rio mostra que quase 10 mil inquéritos, iniciados em 2000, sobre mortes de crianças e adolescentes, estão inconclusivos. O mesmo estudo revelou que 79,5% foram homicídios dolosos, a maioria por arma de fogo. Seguem sem punição.
A condenação ajuda, mas sozinha não resolve. Sem cuidar da prevenção, que evitaria perdas de vidas antecipadas, não vai ter solução. Políticas públicas voltadas para a melhoria da qualidade de vida do entorno familiar são cruciais. Vizinhança segura, saneamento, assistência social e redução da violência doméstica devem se juntar à educação desde a primeira infância.
Jairinho, Ágatha, Lucas, Alexandre e Fernando são os rostos dessa tragédia, cotidiana, mas inaceitável. Milhares como eles esperam resposta, seus pais, explicações, outros, a garantia de futuro melhor para os que sobreviveram e os que ainda virão. Esse ciclo só será rompido quando o investimento na infância for prioridade no País.
É a hora de sonhar. Feliz Natal.
* ELENA LANDAU É ECONOMISTA E ADVOGADA