Entre o limbo e a insolvência

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Entre o limbo e a insolvência

As entidades sem fins lucrativos também precisam de sua lei de falências para sair da crise

Elena Landau*, Valor Econômico
08 de junho de 2004

No mês de abril começou o Campeonato Brasileiro de Futebol. É o início da luta dos clubes pelo direito de pertencer à elite do esporte. Passadas apenas sete rodadas, um grande número de técnicos já caiu ou mudou de emprego. O desassossego tomou conta dos clubes de grande tradição. Contam os meses a sua frente, não mais visando as primeiras posições, isto é, ser a elite, mas buscando tão somente sair da zona de rebaixamento.

A crise em campo não poderia deixar de refletir a situação fora dele. A exemplo de outras atividades econômicas, também faz falta ao esporte instituições fortes e regras claras, estáveis e previsíveis. Em decorrência das CPIs sobre o tema realizadas na Câmara e no Senado, uma nova legislação entrou em vigor em 2002. Esta legislação veio na direção correta, é mais exigente no que se refere à qualidade — e transparência — da gestão. Mas ainda falta muito. Vai levar tempo para consertar o descalabro acumulado ao longo de tanto tempo.

Acontece que a crise financeira dos clubes de futebol exige pressa. A leitura dos balanços de 2003 dos clubes de 1ª linha do futebol brasileiro, recentemente publicados, não deixa dúvidas sobre o estado de sua saúde financeira. Estão em sua grande maioria quebrados, vergados por dívidas incorridas ao longo das últimas décadas e uma sucessão de atos de administração inexplicáveis.

Nem os clubes de grande torcida, como o Flamengo e o Corinthians, ou de ótimo desempenho, como o Cruzeiro, escapam da crise. Na prática, quem hoje gere as finanças da larga maioria dos clubes é o Poder Judiciário. São suas ordens de penhora de receita, para cobertura de débitos, que acabam determinando o fluxo financeiro dos clubes. Essas decisões judiciais, que podem ocorrer a qualquer momento, não obedecem nenhum critério econômico, muitas vezes ocorrendo pedidos de bloqueio superiores a 100% da renda do devedor, um absurdo que beneficia alguns poucos credores em prejuízo dos demais.

Nesse quadro caótico, deve ser aplaudida a decisão do Tribunal Regional do Trabalho da 1ª Região homologando um recente acordo assinado pelos clubes do Rio, que fixou em 15% da receita bruta o limite para a penhora referente a todas as execuções trabalhistas. Há poucos dias, o Hospital da Beneficência Portuguesa do Rio também conseguiu semelhante acordo.

Porém, essa medida, embora muito bem-vinda para evitar o caos no dia-a-dia dos clubes devedores, não é suficiente para resolver os imensos problemas que vêm acentuando a sua gravíssima crise econômico-financeira.

Imprescindível pensar em alternativas institucionais para salvar, não só os clubes de futebol, mas também muitas das entidades integrantes do Terceiro Setor que se encontram em situação semelhante, vivendo à mingua e sem possibilidade efetiva de cumprir sua função social.

É impensável a possibilidade de falência ou extinção de clubes de futebol, museus, universidades ou hospitais. Uma solução tem de ser encontrada para que tenham uma existência digna; museus precisam renovar seus acervos, hospitais investir em
tecnologia e assim por diante. Mas como fazê-lo se toda a receita existente já está comprometida com as dívidas do passado devido à saraivada de cobranças judiciais? E como não repetir os erros do passado?

Por mais sérias, criativas e transparentes que possam ser as administrações atuais dessas entidades, não há como viabilizá-las econômico e financeiramente quando a herança da irresponsabilidade se torna grande demais.

A verdade é que, se continuarmos assim, ninguém nelas investirá. Nem os torcedores mais fanáticos e colaboradores abnegados estarão dispostos a colocar dinheiro novo para recuperar as entidades de seu coração, porque sabem que o dinheiro será tomado na boca do caixa pelas penhoras judiciais para quitar dívidas antigas. E, nessa situação, perdem todos: não só as entidades, seus empregados e admiradores, como também os credores, Neste aspecto, nada as difere das sociedades empresariais que têm na Lei de Falência alternativas para sua reestruturação financeira, visando a manutenção de suas atividades.

A revisão por que passa a Lei de Falências é uma ótima oportunidade para discutir o assunto. Da forma como as coisas estão encaminhadas, ela continuará não se aplicando às entidades sem fins lucrativos. Atualmente, tanto os clubes como as demais entidades do Terceiro Setor, por não serem sociedades empresariais, não têm acesso aos instrumentos legais que permitiriam a sua reorganização.

O ideal seria criar de um mecanismo legal de reestruturação para todas as entidades sem fins lucrativos. Não se trata de perdão de dívidas. Seus antigos administradores abusaram do endividamento partindo do pressuposto que ninguém teria coragem de pedir a insolvência de entidades com tanto significado social e cultural.

Se houvesse um perdão de dívidas estaríamos enviando uma mensagem errada e abençoando práticas que nada tiveram de santas. A idéia é que, para poderem se beneficiar do mecanismo legal da recuperação que seria criado, tais entidades deveriam cumprir uma série de exigências para evitar fraudes e impor profissionalismo aos seus dirigentes.

Os credores poderiam participar ativamente do plano de reestruturação. A transparência administrativa e a divulgação periódica de resultados auditados teriam necessariamente de constar das novas regras.

Do jeito que vamos, clubes de futebol e muitas empresas do Terceiro Setor caminham céleres para a insolvência. Ou vão terminar em um limbo, incapazes de cumprir a função social para a qual foram criadas. Uma boa Lei de Falências é a nossa chance de mudar esse quadro. Vai levar tempo para consertar os desacertos do passado, mas vamos chegar lá. Pensar o contrário seria o mesmo que aceitar deixarmos de ser o país do futebol. A bola está no nosso campo.


* Elena Landau é economista e consultora do escritório de advocacia Sergio Bermudes

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