Demandas da razão

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Demandas da razão

Por mais que a gente tenha saudades de uma bela matada no peito, de um lançamento sob medida e de um jogador carregando a bola com elegância, o fato é que o passado não volta

Elena Landau*, Site no.com.br
10 de agosto de 2001

Recebi mensagem de um leitor reclamando da frieza das minhas colunas. Me acusa de transformar o torcedor num auditor. Não acho que aqui seja o lugar de análises apaixonadas e, consequentemente, parciais. Paixão eu revelo nas arquibancadas do Maracanã, do Caio Martins e em frente a tela da TV. Quem me acompanha nestes momentos sabe do que estou falando.

Para não ficar qualquer dúvida no ar vou esclarecendo logo que como torcedora, continuo fanática. Da buzina do carro ao toque do celular, tudo se refere à Estrela Solitária. O amor pelo Fogão é o mesmo, jogando o time bem ou mal, como naquele adesivo que nos acompanhou durante vinte anos: “Campeão ou não, és eterna paixão.”

Para falar a verdade, em vários momentos da minha vida prometi me afastar do futebol. Tentei seguir os conselhos de um amigo que, depois de ver o time perder pela milésima vez, chegou à conclusão de que não valia à pena se desesperar por algo totalmente fora de seu controle: são 25 pessoas em campo e você não tem como influenciar o resultado. Só sofrer suas consequências. Tentei me afastar em 71, mas não consegui. Fiquei 8 anos distante emocionalmente, entre 81 – ano de um escandaloso roubo contra o Botafogo no Morumbi – até 89, quando fomos campeões. Aí não deu mais para segurar.

Hoje, ando num ceticismo que fica evidente nas minhas colunas. Desde que me envolvi profissionalmente com o futebol, minha forma de ver o jogo mudou. Perdi a ingenuidade. Antes disso, ia ao estádio e reclamava das contratações: como é possível um pereba desses vestir a camisa alvinegra? Hoje, acho que sei como.

Naquele triste empate com o Juventude, na final da Copa do Brasil, há dois anos, a dor e a frustração se confundiam com os inevitáveis cálculos de quanto o Botafogo estava perdendo em termos de patrocínio, televisão e outras oportunidades que poderiam ajudar o clube a tirar o pé da lama.

Se pudesse voltar no tempo, nunca teria me metido com futebol. Preferia ter ficado com a inocência e a irracionalidade da paixão de um torcedor. Mas não posso. É por isso que insisto na importância de uma administração moderna e transparente. (Por falar nisso, na minha última coluna, fiz uma brincadeira a propósito da entrevista do Carlos Augusto Montenegro que pouca gente entendeu. Muitos leitores me cobraram o suposto elogio que teria feito a ele. Então, para deixar claro, não acho a atual direção do alvinegra moderna e muito menos transparente).

A exigência da paixão atinge também os jogadores. Muita gente atribui a má fase da seleção à falta de amor à camisa, ao mercantilismo dos jogadores que pensam duas vezes antes de entrar numa dividida. Acho que eles estão cobertos de razão. Se eles se machucarem num jogo da seleção, a CBF vai cuidar deles e da sua família? Vai custear seu tratamento? Cuidar da sua aposentadoria? Não. O futebol do passado está cheio de exemplos de jogadores abandonados apesar de um amor enorme à camisa. Pelé, Zico e Falcão são exceções. A maioria é composta de Garrinchas e Marinhos Chagas.

O futebol mudou. Por mais que a gente tenha saudades de uma bela matada no peito, de um lançamento sob medida e de um jogador carregando a bola com elegância, o fato é que o passado não volta. O futebol brasileiro não chegou onde está por acaso nem vai também voltar a ser o que era por um passe de mágica temperado pelo saudosismo.

Wanderley Luxemburgo, em entrevista à Folha de S. Paulo, finalmente disse coisas inteligentes. Segundo ele, o Brasil se especializou nos últimos anos em mandar gente para fora. À maioria sai do país muito jovem. Perdem muito cedo contato com a maneira de jogar daqui. O resultado é que a cultura do futebol brasileiro, aquele modo único de jogar que tanto distinguiu nossa escola, está desaparecendo. Há muito tempo que a seleção é composta de estrangeiros. Hoje não é mais possível para nenhum clube nacional se orgulhar de ser a base da seleção.

Para mantermos nossos craques por aqui, só proporcionando a eles a mesma qualidade de vida profissional que eles procuram lá fora. E não é só salário. É calendário, é número de jogos limitados. Salários altos e em dia são apenas consequência de uma maior organização que permite aos clubes receberem mais dinheiro e, portanto, gastarem mais naqueles que fazem o espetáculo. O tempo do amadorismo já passou. O mesmo leitor que pede mais emoção nas minhas análises diz que trato o torcedor como contribuinte. Pura verdade. Ele merece o maior respeito. Sua paixão e sua irracionalidade não devem ser instrumentos para que os dirigentes transformem em benefício privado a administração de um bem tão valioso como o amor à camisa de um time. E paixão não justifica incompetência, desorganização e caixa preta.

Falando em craque amador, à Vila Isabel fará uma homenagem ao grande Nilton Santos, sua vida será tema do enredo deste ano. Parabéns.

* Elena Landau é economista e botafoguense

Leia no site do arquivo da Biblioteca Nacional
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