Devagar com Jesus
Comemoração de gol: o que se vê é um jogador sair correndo sozinho, com a camisa levantada exibindo alguma mensagem, em geral, idiota
Elena Landau*, Site no.com.br
14 de setembro de 2001
Recebi mensagem de um brasileiro que foi morar na Inglaterra. Apaixonado por futebol, virou torcedor do Aston e, no último fim de semana, conseguiu matar as saudades de algo que, há muito, ele não vê em partidas que acontecem no Brasil: uma comemoração de gol marcada por uma espécie de coreografia de dança espontânea. Por aqui, como o próprio leitor lembra, há tempos o que se vê é um jogador sair correndo sozinho pelo campo, com a camisa levantada exibindo embaixo uma camiseta com alguma mensagem, em geral, idiota.
A moda foi lançada pelo mais moleque e ainda principal craque em atividade no Brasil: Romário. No peito dele, a camiseta ficava mais espontânea e, pelo menos nas mensagens iniciais, traziam alguma coisa escrita que criava algum tipo de empatia com a torcida. Com o tempo, a ideia de Romário virou mania, perdeu a espontaneidade e se transformou num lugar comum de recados para a família ou para Jesus, onde o jogador celebra seu gol de maneira individual, como se o futebol não fosse um esporte coletivo.
A saudade do leitor pela velha comemoração, marcada pela explosão improvisada ou pela inteligência ensaiada, cheia de socos no ar, cambalhotas e aquela montanha de corpos subindo uns nos outros, pode parecer um detalhe. Infelizmente, não é. Ela é apenas mais um sintoma, ainda que meramente estético, da atual fase do futebol brasileiro. No fundo, o que está acontecendo pode ser resumido numa frase: nosso futebol está ficando cada vez mais a cara de seu dirigentes – individualista, sem rumo, argentário e, por vezes, hipócrita.
Essa hipocrisia fica patente nas mensagens das camisetas com cunho religioso, ou nas declarações em que a vitória ou a derrota são explicadas como um desígnio de Deus. Nada contra a fé dos jogadores, mas é no mínimo estranho que aqueles que mais apelam ao Divino são os que mais baixam o sarrafo. Curioso é que o surgimento dessa invocação desenfreada a Jesus ou aos santos coincide, justamente, com o espantoso crescimento do número de faltas por jogo. Me recuso a acreditar que Deus possa ser cúmplice da violência que rola nos gramados.
De novo, as ligas
Tive acesso à minuta do decreto presidencial que deve regulamentar o artigo 20 da Lei Pelé, que trata da criação das ligas profissionais. O projeto sofre de um pecado original. Em lugar de funcionar como uma associação empresarial, a liga teria como função principal fiscalizar e organizar a atividade esportiva. Suas principais metas seriam inibir “a direção passional, o planejamento imediatista e a improbidade administrativa” no desporto. Em resumo, parece mais uma agência reguladora do que uma associação de clubes em torno de um objetivo prioritariamente comercial como, aliás, funciona a maioria das ligas no mundo todo.
É o caso de se perguntar o por que de tanta pressa em regulamentar um artigo de uma lei de 1998. Parece que o objetivo fundamental é substituir a CBF como entidade maior do futebol brasileiro pela liga profissional. A CPI do Senado está no meio de seus trabalhos, devendo incluir em seu relatório sugestões para melhorar a organização dos desportos, inclusive uma Lei de Responsabilidade Fiscal no Futebol e a criação de uma agência de fiscalização. Por que não esperar, então, pelo término dos trabalhos da comissão antes de começar a legislar sobre o tema?
Parece que querem transformar a liga na nossa grande salvação. Uma leitura, mesmo rápida do decreto deixa evidente que nada muda na estrutura do futebol, mesmo porque a liga não foi originalmente pensada para isso. À maior parte do projeto trata de obrigação de prestação de contas dos associados, do pagamento de impostos, de auditorias e punições. Obrigações de todos os cidadãos e que já estão previstas no artigo 46-A da Medida Provisória 2141 atualmente em vigor.
O mais interessante, no entanto, é a firmeza com que o decreto trata das obrigações dos associados e passa batido pelas obrigações da própria liga. Logo em seu artigo de abertura as ligas são definidas como pessoas jurídicas de direito privado, com ou “sem” fins lucrativos. Qual seria então a diferença entre as ligas e as outras associações que existem por aí? Me permitam ser repetitiva mas o Clube dos Treze já não seria então a liga profissional do futebol?
Uma liga profissional deveria ser uma sociedade comercial com fins lucrativos, e já que o decreto exige tanta probidade para os associados, deveria cumprir as mesmas obrigações dos associados. Seria importante que o decreto viesse acompanhado de uma minuta do estatuto da Liga. O estatuto poderia trazer, por exemplo, uma descrição dos critérios para fixação de quotas de filiação, contribuição anual, critérios de aceitação, divisão dos lucros, representação, governança e gestão profissional, ou seja, tudo aquilo que realmente está faltando à CBF ou ao Clube dos Treze.
* Elena Landau é economista e botafoguense